Poucas coisas são tão condenáveis em uma relação de amizade e confiança mútuas e sinceras, que a infidelidade e a ingratidão. Defeitos todos nós temos aos montes, e qualidades, também. A força-motriz, portanto, de uma relação sólida, passa longe dos julgamentos pessoais. O pilar existencial de uma união legítima chama-se bem-querer.
Desconheço fundamentalismo – político, religioso ou sei lá quais outros tipos – que seja sustentado por amor, se não incondicional, ao menos quase. Fundamentalistas são, via de regra, egoístas, egocêntricos, insensíveis, intempestivos e narcisistas ao extremo. Não perdoam nem tampouco desejam ser perdoados.
Jair Bolsonaro é um exemplo crasso. Alguém que diz preferir um filho morto em acidente de carro a um filho gay, ou que deu uma “fraquejada” e por isso é pai de uma filha – a mais nova em meio aos quatro marmanjos – mostra-se inteiramente por inteiro. Não à toa o comportamento mórbido observado durante a pandemia do coronavírus.
Defenestrados
Se “quem sai aos seus não degenera”, não podemos esperar comportamentos e sentimentos melhores dos bolsonaristas-raiz – não confundir jamais com quem apenas votou em Jair Bolsonaro, seja por algum tipo de afinidade ou mesmo por rejeição, mais do que justa e justificada, ao lulopetismo.
Recordo-me de nomes de ex-aliados próximos, que juravam amores recíprocos antes da eleição do “mito” e nos dias subsequentes, mas que logo caíram em profunda desgraça a partir de discordâncias, ainda que pontuais – extremistas não admitem adesões inferiores a 100% -, com a intocável e inquestionável família Bolsonaro.
Alexandre Frota, Joice Hasselmann, Gustavo Bebianno, General Santos Cruz, Sergio Moro… Todos foram devidamente rifados, atacados e tratados como comunistas, anti-patriotas, vendidos, traidores, demônios (no sentido literal, inclusive). Tudo porque ousaram, em algum momento, vejam só a audácia, discordar do “mito”.
Sabujice até o fim
Todos estes nomes, porém, romperam com o bolsonarismo. Por isso, chama a atenção o caso de Carla Zambelli, deputada federal e ré no STF por ter perseguido um rapaz negro pelas ruas de São Paulo, com uma pistola em riste após uma troca de ofensas, que, apesar de humilhada publicamente, mantem-se fiel ao “Bolsodeus”.
Em vias de ser condenada – seis ministros já votaram em seu desfavor -, perder o mandato e se tornar inelegível, a valente é considerada, desde a derrota de Bolsonaro para Lula, em 2022, a principal culpada pela derrocada bolsonarista e a consequente persecução penal em curso contra o próprio Jair e seus áulicos aloprados.
Bolsonaro e bolsonaristas a culpam diretamente pela perda de ao menos dois milhões de votos em São Paulo, que seriam suficientes – nas contas e delírios particulares dos mesmos – para tirar a vitória do atual presidente da República. Em um podcast que foi ar na noite de segunda-feira, 24, Zambelli foi assim citada:
Quero colo
“Aquela imagem da Carla Zambelli da forma que foi usada, perseguindo o cara lá. Teve gente [que pensou]: ‘Olha, o Bolsonaro defende o armamento’. Mesmo quem não votou no Lula, anulou o voto. Carla Zambelli tirou o mandato da gente”, disse Jair Bolsonaro, tendo a concordância imediata do governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas.
Mais uma vez defenestrada publicamente do bolsonarismo, e não satisfeita com o próprio destino de abandono, Carla Zambelli se vitimizou: “Enfrentar o julgamento dos inimigos é até suportável. Difícil é aguentar o julgamento das pessoas que sempre defendi e continuarei defendendo”. Eis a submissão ampla, geral e irrestrita.
A deputada, obviamente, com parcas esperanças jurídicas pelo pedido de vista de seu processo pelo ministro Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, não quer saber de confusão com a turma. Como a esperança é a última que morre, e falta de amor próprio é um direito individual, Zambelli deverá seguir com seus rapapés.
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