Depois de registrar uma alta de 7% no fluxo de visitantes em 2024, o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses recebeu, entre janeiro e julho deste ano (baixa temporada na região), mais de 380 mil turistas —37% a mais do que no mesmo período do ano passado. Também em 2024, o lugar recebeu o título de patrimônio natural da humanidade, concedido pela Unesco.
Mas a infraestrutura das cidades que margeiam o parque não tem acompanhado o crescimento do turismo. Segundo o Instituto Água e Saneamento, em Barreirinhas, a principal porta de entrada para o local, 60% dos 64 mil habitantes ainda usam fossas rudimentares, e a rede de esgoto só alcança 7% da população.
Metade do lixo é queimada e a outra metade vai para um lixão de 60 mil m² a 20 km do centro —longe dos olhos dos visitantes, mas próximo o suficiente para ameaçar o equilíbrio ambiental dos Lençóis, já que, segundo estudos, os efeitos negativos de uma estrutura dessas podem se estender por um raio de 80 a 100 km dela. Em Barreirinhas, portanto, isso inclui toda a área do parque.
Em Santo Amaro do Maranhão, outra base de visitação, a situação é pior: só 0,22% dos 14 mil habitantes são ligados à rede de esgoto, e 63% do lixo é queimado.
Dada a dimensão do parque —são 1.550 km², quase a mesma área da capital paulista—, esses impactos ainda não são visíveis, mas levantamentos conduzidos na região já conseguem mensurá-los.
Praia imprópria para banho
Em maio de 2024, Éville Karina, coordenadora de estudos sobre biodiversidade do Instituto Federal do Maranhão em Barreirinhas, mediu a qualidade da água em dois pontos do rio Preguiças, que atravessa a cidade e define os limites a leste do parque.
Tanto próximo à ponte sobre ele, recém-construída, quanto na praia do morro da Ladeira, as concentrações de coliformes totais eram superiores ao limite satisfatório (1.000/100 ml), chegando a 2.480/100 ml na praia —imprópria para banho, portanto.
A pesquisadora diz que a pesquisa não investigou a origem desses poluentes. “Mas é comum na região que as pessoas construam seus próprios poços e fossas”, afirma. “Em um outro estudo, avaliamos a água desses poços e concluímos que eles estão contaminados.”
Nos arredores dos Lençóis essa situação é ainda mais crítica porque as lagoas do parque, principal motor econômico da região, são lençóis freáticos que emergem do subsolo ao serem inundados pelas chuvas do primeiro semestre.
“É um território arenoso, em que a água flui de forma subterrânea e também superficial. A poluição do lençol freático pode facilmente chegar às lagoas”, diz Leonardo Silva Soares, vice-reitor da Universidade Federal do Maranhão, a UFMA, e doutor em desenvolvimento e meio ambiente. Ele orienta um trabalho segundo o qual a bacia do rio Negro, um dos rios que fluem para o litoral atravessando os Lençóis, é o ponto de maior vulnerabilidade.
Sob reserva, fontes afirmam que já foram detectadas contaminações nas área de acesso mais restrito do parque nacional.
Longe dos olhos dos turistas, que lotam a cidade na alta temporada (entre julho e setembro), a mesma chuva que enche as lagoas também inunda Barreirinhas entre janeiro e junho, provocando mau cheiro e
evidenciando que a drenagem (uma das vertentes do saneamento básico) também é deficiente.
Plano Diretor desatualizado
No ano passado, a Defensoria Pública do Maranhão tentou mobilizar o estado, a Prefeitura, a Caema (companhia estadual de saneamento) e o ICMBio (responsável pela gestão do parque) a tomarem providências em relação ao problema, que se mostrou ainda maior do que parecia.
A última versão do Plano Diretor de Barreirinhas, um documento obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes e que deve ser atualizado a cada dez anos, é de 2005 —reflete, portanto, uma cidade que não existe mais.
“Não existe discussão sobre a cidade sem a diretriz máxima, que é o Plano Diretor”, diz o defensor Lucas Uchôa, que chefiou a Defensoria em Barreirinhas até maio deste ano. “Sem esse documento atualizado, não dá para falar de regularização de imóveis, áreas de inundação ou saneamento.”
O mesmo acontece com o plano de manejo do parque nacional, publicado em 2001, e que desde então recebeu apenas uma pequena atualização, em 2022.
Para o professor Antonio Carlos Leal de Castro, coordenador da versão original do plano, nesse tempo todo o documento nem sequer foi implementado e fiscalizado em sua totalidade, principalmente por causa do quadro reduzido de servidores do ICMBio. Pelo contrário, ele diz, as normas foram até afrouxadas por portarias do próprio instituto durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
“O plano de manejo determina a quantidade de visitantes e o que pode ser feito em cada área do parque”, diz Castro. “Se ele realmente fosse fiscalizado, cumprido, o parque não sofreria tanto. Mas tudo foi flexibilizado.”
Problemas de infraestrutura
Mesmo a nova ponte é, na visão de Castro, controversa, porque induz ao aumento da visitação em um momento em que o controle deveria ser mais rigoroso. Segundo o ICMBio, a contrapartida à ponte são algumas guaritas de controle de acesso ao parque, construídas pela prefeitura.
Chefe do parque, Cristiane Figueiredo diz que apesar das deficiências de infraestrutura (especialmente turística, como a ausência de mais guaritas, de um centro de visitantes e até de sanitários), ela conta com uma equipe numerosa para os padrões do ICMBio: são 32 servidores, e outros três devem chegar em breve.
Ela diz também que um acordo de cooperação técnica assinado recentemente com o governo do estado deve acelerar os trabalhos de atualização do plano de manejo —o que colabora, inclusive, para que o parque consiga manter o título da Unesco.
Uma das recomendações que vêm com o título é, segundo ela, é a definição e a fiscalização da carga de visitantes que o parque consegue suportar sem que ocorram desequilíbrios —como a redução da profundidade de algumas lagoas que, segundo Castro, já é um reflexo da presença excessiva de veículos sobre as dunas.
“A recomendação da Unesco é a de que o turismo deve acontecer de forma sustentável. Politicamente, o título veio num momento muito bom”, diz Figueiredo, chefe do parque. “Tivemos rodadas de conversa com os municípios em volta e com a Secretaria Estadual de Turismo para identificar e sistematizar as demandas e dar os encaminhamentos, inclusive à questão do lixo.”
Destino do lixo
Os resíduos sólidos são, de fato, um problema. Marcela Ferreira, da ONG Instituto Mostra de Lixo Marinho, estuda materiais de encontrados na praia do Barro Vermelho, vizinha ao parque, no município de Paulino Neves. Desde 2009, ela recolheu e catalogou mais de 19 toneladas de lixo, do Brasil e de mais de 20 países, trazidos pelas correntes marítimas que passam pela região.
“Isso mostra que no mar não existem fronteiras. Um resíduo da África que não teve a destinação correta pode acabar aqui na nossa região”, diz. Ou até mesmo do espaço: neste ano, no dia do aniversário do parque, lixo espacial proveniente da SpaceX caiu bem ali.
Enquanto a responsabilidade de evitar que os visitantes levem lixo para dentro do parque é do ICMBio, que proíbe as garrafas de vidro, nos arredores a destinação do lixo fica com as prefeituras.
“Atualmente, os resíduos sólidos de Barreirinhas vão para uma área de transbordo [o lixão visitado pela reportagem], e de lá seguem para o aterro de Titara [em Rosário, na região metropolitana de São Luís, a 200 km dali]”, afirma o vice-reitor da UFMA. “Mas essa área de transbordo precisa ser melhor organizada, porque ela aparenta ser, de fato, um lixão.”
À Folha, o prefeito de Barreirinhas, Vinicius Vale (MDB), disse que a sua gestão já trabalha na elaboração de um novo Plano Diretor, que deve ficar pronto até o fim do ano, destravando também o plano de saneamento e drenagem —que já teria até um repasse R$ 100 milhões do governo estadual para a sua execução. O prefeito afirma ainda que o título da Unesco azeitou as negociações com os governos estadual e federal.
Vale também diz que a prefeitura fiscaliza os empreendimentos imobiliários que têm sido construídos à beira do rio Preguiças, garantindo que eles deem uma destinação ambientalmente responsável ao esgoto e que respeitem a distância mínima de 50 metros para construções em terrenos na margem do rio. Entretanto, navegando pelo rio Preguiças, a reportagem avistou diversas construções à beira da água.
Ação civil pública
Caso o Plano Diretor não saia até o final do ano, a Defensoria espera abrir uma ação civil pública contra o município. “Entendemos que elaborar esse plano leva tempo, e por isso demos um prazo”, diz Rodrigo Zeidan, atual chefe do órgão no município.
Para Carlos Silva Filho, ex-presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos, a coerção judicial em geral é a forma mais eficaz para resolver a questão do saneamento. De acordo com a Constituição, a competência em matéria de meio ambiente é concorrente entre município, estado e governo federal.
Ele diz também que, em municípios turísticos como Barreirinhas, o custeio das soluções pode vir de uma taxa turística. “Vários dessas cidades implementaram uma taxa como essa, o que não necessariamente é ruim, porque não é um valor absurdo”, afirma Silva Filho.
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