PM aposentado preso em conflito com morte de líder indígena na Bahia disse que ‘passava pelo local’ e atirou ‘porque foi ameaçado’

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Um dos dois presos em flagrante, por suspeita pela morte da líder indígena pataxó hã-hã-hãe Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, durante conflito armado no Sul da Bahia, no último domingo (21), é um policial militar aposentado. Em depoimento à Polícia Civil, após a prisão, ele negou que tenha sido convocado via aplicativo de mensagens pelo grupo “Invasão zero”, que teria articulado o ataque, e disse que passava por acaso pelo local, na zona rural de Itapetinga — a informação do Ministério dos Povos Indígenas de que o conflito havia acontecido em Potiraguá, cidade próxima, foi corrigida pelas autoridades. O outro suspeito optou por ficar em silêncio.

Aos investigadores, o policial aposentado afirmou que “passava pelo local quando foi ameaçado por indígenas e atirou para o alto”. A expectativa da Polícia Civil é de que já nesta terça-feira seja concluído o laudo de microcomparação balística que atesta a relação entre as armas apreendidas com os suspeitos e a bala que atingiu que Nega Pataxó. O resultado deverá apontar qual dos dois efetuou o disparo que a matou, legitimando um pedido de prisão preventiva. Hoje, a maior suspeita recai sobre o rapaz mais jovem.

— Já expedimos várias intimações e começaremos em breve as oitivas. Estamos aguardando ainda hoje o recebimento do laudo de microcomparação balística que deve atestar, como nós já acreditamos, que o projétil que atingiu a vítima tenha partido da arma de um dos dois suspeitos. Estamos focados nisso — informou o delegado Roberto Junior, da Delegacia Regional do Interior Sul/Sudoeste.

Irmãos indígenas foram atingidos durante ataque supostamente articulado por fazendeiros: Nega Pataxó morreu — Foto: Reprodução / Redes sociais
Irmãos indígenas foram atingidos durante ataque supostamente articulado por fazendeiros: Nega Pataxó morreu — Foto: Reprodução / Redes sociais

Os investigadores já analisam prints de mensagens trocadas no grupo de Whatsapp do chamado movimento Invasão Zero, que chegaram à polícia através de membros que supostamente não interagiam com as incitações. A polícia, entretanto, aguarda autorização da Justiça para poder ter acesso completo a esses diálogos.

— Estamos analisando e são muitas conversas. Várias onde há convocação para comparecer à fazenda. Mas não podemos nem comentar muito sobre essa análise porque ainda não tivemos acesso judicial às trocas de mensagens — acrescentou o delegado. — O que sabemos é que esse grupo de produtores rurais fizeram essa convocação via WhatsApp para que todos os fazendeiros fossem participar dessa reintegração. Estamos trabalhando para identificar os articuladores.

O caso

 

A morte de uma indígena no confronto de pataxós hã hã hãe com 200 fazendeiros em Potiraguá, no Sul da Bahia, no domingo, expôs a escalada da rivalidade entre produtores rurais e os povos originários, que ganhou uma nova dimensão em todo o país com a discussão sobre o marco temporal para delimitar novas reservas. Militante do PSOL, Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó, foi baleada em um conflito com um grupo reunido por um movimento contra invasões nascido na Bahia mas que hoje tem atuação nacional. Dois fazendeiros foram presos, e um pataxó com uma arma artesanal também foi detido.

O irmão de Nega Pataxó, o cacique Nailton Muniz, foi baleado nos rins e operado em um hospital em Itapetinga. Pelo menos outras quatro pessoas ficaram feridas, inclusive um fazendeiro atingido por uma flecha. Os proprietários rurais tentaram expulsar os pataxós da Fazenda Inhuma, ocupada desde o dia 20 pelos indígenas, cercando a invasão com “dezenas de caminhonetes”, segundo o Ministério dos Povos Indígenas.

A ministra Sonia Guajajara e a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, visitaram ontem os feridos em hospitais da região e foram ao velório de Maria de Fátima, na Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu.

— Aqui na Bahia, onde tudo começou, o início do Brasil, a presença dos povos indígenas ainda vive toda essa situação de lutar pelo seu território — lamentou a ministra durante a visita.

Demarcada em 1926

 

As circunstâncias do conflito mostram a disputa entre indígenas e produtores rurais por terras que hoje têm situação fundiária incerta. A fazenda onde houve o tiroteio teria sido formada a partir de uma onda de invasões que, nos anos 1970, foram feitas na reserva indígena Caramuru Paraguassu, antes mesmo de o território ser extinto pelo governo do estado, em 1976, durante a ditadura, segundo o Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. A reserva havia sido criada em 1926 pelo então Serviço de Proteção ao Índio.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também relacionou o ataque ao projeto aprovado pelo Congresso para a instituição do marco temporal, apesar de a tese ter sido considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. “A proposta impulsionou ainda mais fazendeiros, empresários e políticos contrários à causa indígena a investirem contra as comunidades indígenas”, afirmou a entidade. “Em pouco mais de 30 dias (14 de dezembro a 21 de janeiro), foram registradas pelo menos oito investidas contra os povos indígenas no Sul e Extremo Sul da Bahia”, enumerou o Cimi.

De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foi a segunda morte de lideranças pataxó hã hã hãe nos últimos 30 dias. Na véspera do Natal, o cacique Lucas Pataxó foi assassinado e os autores do crime ainda não foram encontrados.

Ao longo dos dois últimos anos, foram assassinados sete indígenas pataxó, houve 29 mortes, segundo a Apib. Para a Articulação, os conflitos se devem especialmente à “morosidade na demarcação e homologação das terras indígenas”.

Apoio em CPI do MST

 

Os fazendeiros foram reunidos a partir de uma convocação, em um grupo de WhatsApp, do Movimento Invasão Zero. “Na Bahia, invasão de propriedade não se cria”, dizia uma publicação convocando para a ação.

O Invasão Zero surgiu em abril do ano passado na Bahia. Liderado pelos empresários Luiz Uaquim e Dida Souza, o grupo se expandiu na esteira das discussões da CPI do MST da Câmara dos Deputados, no segundo semestre. O Invasão Zero se articulou com líderes bolsonaristas da bancada ruralista, principalmente o deputado federal Luciano Zucco (PL-RS), que presidiu a comissão. Àquela altura, o movimento dizia reunir mais de 10 mil fazendeiros baianos.

Surgindo como um potencial antagonista ao MST, o movimento deu nome a uma frente parlamentar lançada em outubro do ano passado, em Goiás, em cerimônia com a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro e do ex-ministro do Meio Ambiente e atual deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), criada para atuar, àquela altura, em defesa também do Marco Temporal.

O delegado Roberto Junior, da Delegacia Regional de Polícia de Interior (Dirpin), à frente das investigações, afirmou que os fazendeiros armados poderão responder por associação criminosa armada e o trabalho agora é identificar e intimar cada um.

— Já identificamos que uma pistola abandonada no local pertence a um produtor rural da cidade, que foi intimado — adiantou.

A polícia tem informaçõse de que Uaquim e Dida Souza são administradores do grupo de WhatsApp que convocou os ruralistas. Os dois devem ser ouvidos pela polícia nos próximos dias.

O defensor regional de Direitos Humanos da Bahia Erik Boson, vê com preocupação a formação do grupo armado e organizado que teria articulado o ataque.

— A formação de um grupo paramilitar constitui crime e não pode existir. É uma situação a ser investigada, com certeza, pelo Ministério Público — acrescentou. ( o Globo )

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Da Redação

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