Sancionada em 2006, texto ganhou ajustes em 18 anos;

A luta do psicoterapeuta Andrew Cicchetti, um homem gay de 49 anos, foi o pontapé que motivou o Supremo Tribunal Federal (STF) a decidir que a proteção conferida pela Lei Maria da Penha deve ser estendida a casais homoafetivos formados por homens. Essa nova alteração, que também referenda a inclusão de mulheres trans e travestis, se soma a mais de dez medidas adicionadas à legislação nos últimos 18 anos, ao mesmo tempo em que cobra a necessidade de investimento em políticas de gênero.
Nascido nos EUA, Andrew viveu cerca de 12 anos em Mato Grosso. Ele encabeçou o mandado de injunção junto ao Supremo — que visa ainda a uma lei específica para homens gays e bissexuais — após sofrer sucessivos episódios de violência doméstica, psicológica, física e patrimonial por parte de um ex-companheiro brasileiro. O americano morreu em novembro de 2024 vítima de um infarto.
Em uma entrevista publicada pelo Instituto Brasileiro de Direito da Família, no ano passado, Andrew contou que na véspera de Natal de 2021 teve motivos para buscar uma ordem de proteção:
— As ações do meu agressor, após a separação, me deixaram com medo. Na delegacia, por ser um homem gay, foi negado o meu pedido. Sofrer violência do parceiro íntimo é um fator de risco para desenvolver transtornos e até ser vítima de homicídio doméstico.
Estigma social
O ministro do STF, Alexandre de Moraes, ao votar pela procedência do mandado, considerou que é possível estender, por analogia, a incidência da norma aos casais homoafetivos do sexo masculino, “se estiverem presentes fatores contextuais que insiram o homem vítima da violência na posição de subalternidade dentro da relação”.
A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, estabelece medidas para proteger as vítimas, como a criação de juizados especiais de violência doméstica, a concessão de medidas protetivas de urgência e a garantia de assistência às vítimas. No caso das relações homoafetivas entre homens, as punições e os agravamentos de penas não serão considerados, mas somente as medidas protetivas previstas na norma.
De acordo com o advogado Paulo Iotti, responsável por elaborar o pedido ao STF, a realidade das violências em relações homoafetivas é bastante comum, apesar de pouco falada e quantificada. Elas ocorrem, afirma o especialista, por conta do estigma e padrões de masculinidade embutidos na sociedade, que levam à perpetuação de valores como o de posse do parceiro.
— Em algumas relações entre pessoas do mesmo sexo existe uma subalternidade, da mesma forma das relações abusivas entre casais heteroafetivos. Por exemplo, quando um fica como dono de casa e o outro trabalha — afirma. — Os homens não serão atendidos em delegacias da mulher, mas poderão ter todas as medidas protetivas, algo que antes apenas tribunais isolados reconheciam por jurisprudência.
A Maria da Penha é considerada uma das políticas mais completas de proteção à mulher, mas o baixo investimento impede a sua plena aplicação no país, segundo a promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas, coordenadora do subcomitê de gênero do Ministério Público de São Paulo. Ela afirma que hoje “nenhum equipamento funciona plenamente”, fator que mantém as vítimas desprotegidas e inibe o combate ao problema.
— Vivemos uma série de cortes de gastos que frearam as políticas de ajuda às mulheres. Todas as leis complementares à Maria da Penha seriam suficientes se houvesse um empenho em atender essas vítimas, julgar seus casos em varas especializadas e dar o apoio previsto, que vai do material ao psicológico. Mas falta investimento — defende.
Mulheres trans
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que o Judiciário recebeu no ano passado 959.228 novos processos de violência doméstica e feminicídio, número 59% maior que o registrado em 2020, quando o dado passou a ser contabilizado. O número alarmante de casos não acompanha a quantidade de medidas protetivas concedidas: em 2024, cerca de 578 mil mulheres tiveram acesso a esse direito.
Procurado, o Ministério da Justiça informou que em 2025 está em atividade a construção da política nacional das Salas Lilás, espaços de acolhimento dentro das delegacias policiais não especializadas. A pasta também disse que criou o Registro de Ocorrência Geral de Emergência e Risco Iminente às Pessoas LGBTQIA+, para priorizar demandas dessa parcela da população.
O GLOBO também procurou o Ministério das Mulheres, mas não obteve resposta.
Apesar de não ser uma medida inovadora, o acesso aos mecanismos da lei a mulheres trans e travestis, decisão de 2022 do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), foi referendado pelo STF. A Corte entende que o conceito de feminilidade não se limita ao sexo biológico.
‘Lacuna do legislativo’
Vítima de agressão por parte de um ex-companheiro que tentou asfixiá-la com o cinto de segurança do carro, a professora Rubra de Araújo, de 49 anos, conta que não se sentiu segura em denunciar por medo de sofrer mais violências, caso não houvesse um amparo legal. Ela mora em Porto Nacional, cidade a 53 km de Palmas, em Tocantins, onde até hoje não há uma delegacia da mulher.
— Eu me omiti por medo de morrer. Sou doutora, mas isso não me exime de violência. Sofri violência física, psicológica e patrimonial calada e sozinha, porque também temia pela minha mãe de 85 anos. Hoje, com a lei, eu me sentiria mais forte em denunciar — afirma.
Segundo a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides, a decisão é um avanço, visto que, pelo 16º ano consecutivo, o Brasil foi considerado o país que mais mata pessoas trans no mundo, conforme apontado no último mapeamento da instituição. Das 122 mortes registradas, 117 foram contra travestis e mulheres trans.
— A medida busca suprir a lacuna deixada pelo Poder Legislativo, que tem se omitido na garantia dos direitos da população LGBTQIA+ — diz Bruna Benevides.
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