O governo Lula é contra a proposta de emenda à Constituição (PEC) que acabaria com o domínio da União sobre os chamados terrenos de marinha, áreas situadas próximas à costa marítima e de rios, lagos e ilhas, e que os críticos dizem abrir caminho para a privatização das praias brasileiras.
Em audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, na última segunda-feira (27), representantes de três órgãos do governo disseram que se a proposta relatada e defendida pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) for aprovada haverá riscos ao meio ambiente, às contas públicas e à soberania nacional. Falaram na audiência integrantes do Ministério do Meio Ambiente e o da Gestão e Inovação, além do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
O projeto de lei permite que os terrenos de marinha, hoje propriedade da União, poderiam ser repassados aos municípios, estados ou entes privados – neste caso, mediante pagamento.
Mas, na interpretação da representante da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) do Ministério da Gestão e Inovação, Carolina Gabas Stuchi, se a lei for aprovada como está, vai favorecer “a privatização e o cercamento das praias”.
Carolina disse ainda que a proposta “acaba favorecendo essa ocupação desordenada [dos terrenos de marinha], ameaçando os ecossistemas brasileiros, tornando esses territórios mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos”.
Durante a audiência, porém, Carolina admitiu que o governo ainda não tem informações atualizadas sobre as regiões que, à luz da lei, pertencem à União. Segundo ela, há 565 mil imóveis em terrenos de marinha cadastrados pelo governo federal, mas a projeção é de que haja 2,9 milhões de propriedades nessas condições.
“Então, ainda que a PEC fosse aprovada hoje, a gente teria um caos administrativo, porque teríamos que achar e cadastrar todos os ocupantes desses quase 3 milhões de imóveis que ainda não conhecemos”, alertou.
Já a coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente, Marinez Eymael Garcia Scherer, afirmou que o projeto vai na direção contrária da legislação de outros países que reservam para o domínio estatal áreas ainda maiores do que a do Brasil, como Espanha (200 a 500 metros, dependendo da região), Uruguai (250 metros) e Suécia (300 metros).
“Retirar do Estado a possibilidade de planejamento futuro, de ordenar o bem público e de delimitar a ocupação em áreas vulneráveis é um gol contra, é um tiro no pé, é um retrocesso”, argumentou Marinez.
O representante do GSI, Bruno de Oliveira, diretor do Departamento de Assuntos do Conselho de Defesa Nacional, também citou exemplos internacionais para alertar contra o texto da PEC – mas sob a perspectiva da soberania brasileira.
Isso porque, no seu parecer favorável à PEC, Flávio Bolsonaro argumenta que a origem do conceito de terrenos de marinha está associado justamente à segurança da costa brasileira e que, atualmente, “essas razões não estão mais presentes, notadamente diante dos avanços tecnológicos dos armamentos que mudaram os conceitos de defesa territorial”.
Mas, para o diretor do GSI, os terrenos ainda são “imprescindíveis à defesa nacional”.
“O fato de a revolução tecnológica modernizar o armamento não elimina a necessidade do terreno de marinha, no nosso caso”, disse ele. “Os novos armamentos mudam a estratégia, mas não extinguem a missão”.
Oliveira também comentou a divergência sobre a restrição do acesso às praias.
“Ok, a praia e o mar não são afetados pela PEC, mas o acesso a eles, sim. Hoje, restrições já acontecem, mesmo sendo ilegal e inconstitucional. Se a gente privatizar, conceder aos particulares essa propriedade, realmente não vai haver uma apropriação de mares e praias de direito, mas vai ter de fato”, sustentou o representante do GSI.
O impacto econômico de uma eventual aprovação da PEC também foi debatido pelos integrantes do governo Lula na audiência. Carolina Gabas, da SPU, afirmou durante a reunião que a União arrecadou R$ 1,1 bilhão em 2023 com duas taxas cobradas sobre propriedades em terrenos de marinha, o laudêmio e o foro. Perder essas taxas causaria um prejuízo às contas públicas.
Já Bruno de Oliveira, do GSI, citou um levantamento do governo que projeta um impacto orçamentário anual de R$ 2,5 bilhões e perdas de R$ 500 bilhões no balanço geral da União que refletiriam a perda do patrimônio, principal objeto da PEC.
O projeto tem mobilizado interesses de grandes players do setor imobiliário, que pretendem desafiar a articulação política do Palácio do Planalto, em xeque após derrotas em série nesta semana.
Com a realização da audiência pública, a proposta pode ser pautada a qualquer momento pelo presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (União-AP), mas não há prazo para isso ocorrer. Como já passou pela Câmara dos Deputados, se tiver aval do plenário do Senado, vai direto à sanção presidencial. ( o Globo )
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