Comunidades denunciam restrição ilegal a praias e manguezais por empresa que pretende construir pousada de luxo e projeto de carbono em área federal.

ARAIOSES – A Ilha do Caju, localizada no município de Araioses, voltou ao centro de uma polêmica que envolve comunidades tradicionais, empresas privadas e o governo federal. O território, de cerca de 9 mil hectares, passou a ser tratado como “ilha privada” após um contrato de aforamento firmado entre a União e a empresa Ilha do Caju LTDA, pertencente ao empresário sueco Jimmy Furland e à esposa, a ex-modelo cearense Natália Furland, donos do hotel de luxo Casana, no Ceará.
A empresa pretende construir uma pousada de alto padrão com até 50 leitos e associar o empreendimento a um projeto de captura de carbono, o Blue Carbon (Carbono Azul), em parceria com a multinacional Ambipar, sediada em São Paulo.
Segundo apuração do Intercept Brasil, pescadores e catadores de caranguejo que vivem em comunidades da Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba relatam estar sendo impedidos de acessar áreas de mangue, praias e igarapés usados tradicionalmente para pesca e coleta. Denúncias indicam a presença de seguranças armados que ameaçam e intimidam moradores.
“Lá é o lugar onde tem mais caranguejo e peixe. Agora a gente não pode mais entrar”, contou o pescador Leandro dos Santos, vice-presidente da AmarDelta, associação que representa cerca de 2 mil famílias da região.
Uso restrito e possível violação de leis ambientais
A Superintendência do Patrimônio da União (SPU) no Maranhão confirmou que o contrato de aforamento autoriza o uso de apenas 252 hectares da ilha, o que representa menos de 3% da área total, e não inclui praias, manguezais, igarapés e apicuns, considerados bens de uso comum do povo.
“Qualquer tipo de proibição imposta a moradores das comunidades tradicionais é ilegal”, afirmou o defensor público federal Yuri Costa, que acompanha o caso.
Costa ressalta que tanto o Código Florestal quanto a Lei do Gerenciamento Costeiro (Lei nº 7.661/1988) garantem o livre acesso a esses ambientes. Ele alertou ainda que o uso de seguranças armados para impedir a entrada de moradores pode configurar crime de constrangimento ilegal.
Projeto de carbono e consulta irregular
A Ambipar e a Ilha do Caju LTDA associam a pousada ao projeto Carbono Azul, que prevê a conservação de 8,5 mil hectares da ilha como forma de compensação ambiental. No entanto, representantes de comunidades relatam que não houve consulta prévia, livre e informada, como exige a Convenção 169 da OIT.
O defensor público federal explica que apenas o Estado tem prerrogativa para conduzir esse tipo de consulta, e não empresas privadas.
“A empresa não pode realizar a consulta de forma autônoma. Cabe ao poder público garantir o processo, ouvindo as comunidades afetadas”, disse Costa.
Segundo a AmarDelta, representantes da Ambipar apresentaram o projeto em uma reunião e perguntaram se aquele encontro poderia “valer como consulta prévia”. Os pescadores negaram, mas relatam que, após o episódio, as restrições e ameaças aumentaram.
Empreendimento sem licenciamento ambiental
Apesar de estar em uma Área de Proteção Ambiental (APA), a Ilha do Caju LTDA afirma estar dispensada de licenciamento ambiental com base na Portaria nº 123/2015 da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), que isenta hotéis com até 50 leitos.
A Sema informou, contudo, que o pedido de dispensa ainda está em análise e que foram identificadas pendências técnicas, incluindo a falta de anuência da SPU e do ICMBio, além da necessidade de um projeto de esgotamento sanitário.
Até o momento, nenhuma autorização foi emitida, segundo o órgão estadual. Mesmo assim, a empresa já obteve alvará e certidão de uso do solo emitidos pela Prefeitura de Araioses, que não respondeu aos pedidos de esclarecimento.
Histórico de privatização e conflitos
A Ilha do Caju é de domínio da União, mas está sob controle de particulares há mais de 70 anos. O primeiro contrato de aforamento data de 1950, quando o território foi cedido ao empresário inglês James Frederick Clark. Desde então, passou por gerações de estrangeiros até ser vendida em 2022 aos Furland.
Relatos de moradores antigos indicam que as restrições ao uso tradicional já existiam desde os anos 1990, sob o argumento da preservação ambiental.
“Tudo tem carbono. Não pode pegar caranguejo, nem mexer no manguezal. Reduzem a natureza ao carbono e excluem quem sempre viveu dela”, critica Luciano Galeno, do Conselho Pastoral dos Pescadores no Piauí.
Ambipar acumula multas ambientais
A Ambipar, responsável pelo projeto de carbono na Ilha do Caju, é uma das maiores empresas brasileiras no setor de soluções ambientais. O grupo fechou contratos milionários com o governo federal e com o Supremo Tribunal Federal (STF) para compensar emissões de carbono.
Entretanto, a empresa acumula mais de R$ 22 milhões em multas aplicadas pelo Ibama em 2024 por irregularidades em outros projetos ambientais. As penalidades seguem ativas no sistema do órgão.
“Pós-luxo” e exclusividade
Os empresários Jimmy e Natália Furland são donos do Hotel Casana, em Cruz (CE), que se define como o primeiro de “pós-luxo” do Brasil — um conceito que explora experiências de imersão cultural e natureza com diárias que chegam a R$ 12 mil.
A proposta é replicar o modelo na Ilha do Caju, vendendo “ecoturismo sustentável” e “luxo contemplativo”. Pelo contrato com a União, os Furland pagam R$ 907 por ano pelo uso da área federal.
O que dizem as empresas
Em nota, a Ilha do Caju LTDA afirmou que as “demandas da comunidade local estão sendo cuidadosamente consideradas”, mas não comentou as denúncias de intimidação.
A Ambipar, por sua vez, informou que atua apenas no desenvolvimento técnico do projeto Carbono Azul, ainda em fase de estudos, e negou qualquer envolvimento com seguranças ou restrições de acesso.
Órgãos federais como Ibama, ICMBio, SPU e o Ministério Público Federal informaram que não foram oficialmente comunicados sobre o empreendimento nem sobre o projeto de carbono.
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