Filho de Parteira
Nas mãos de Mãe Inês
Na última segunda-feira, ao chegar ao trabalho, fui surpreendido por uma pergunta curiosa de Rafael, um amigo do escritório. Mal tive tempo de largar a bolsa e ele já disparou: “Elson, você nasceu pelas mãos de uma parteira?” A pergunta veio com uma naturalidade que me desarmou, mas respondi, quase com orgulho: “Sim, nasci pelas mãos da minha avó Inês, uma parteira experiente que fez o parto de todas as suas noras.” Nem cheguei a perguntar o que motivara o assunto, mas logo ele revelou que também nascera, assim como seus irmãos, pelas mãos dessas mulheres que a vida preparou com uma sabedoria tão natural quanto rara. E completou, quase melancólico: “Hoje, pouco se ouve falar delas.”
Houve um tempo em que médico obstetra era luxo. Nascer em hospital, cercado por médicos, enfermeiros e auxiliares, era privilégio reservado a poucos. No entanto, o nascimento sempre encontrou seus caminhos, e esses caminhos quase sempre passavam pelas mãos firmes das parteiras. Elas não eram apenas profissionais, mas símbolos de confiança, afeto e, de certa forma, reverência. Eram chamadas de “mães” – mães de consideração, mães de todos. Minha avó, por exemplo, foi conhecida por todos nós como “Mãe Inês”. Os netos, os filhos das noras, e até mesmo os vizinhos não economizavam no respeito. Ao cruzar por ela, era quase ritualístico: “Benção, Mãe Inês!”
Essa figura tão emblemática das parteiras transcendeu o ato do parto. Elas eram quase sacerdotisas de um rito de passagem, guardiãs de histórias e esperanças. Com suas mãos calejadas, muitas vezes ásperas pelo trabalho árduo, traziam ao mundo não só crianças, mas também uma aura de cuidado e humanidade que não se encontra em qualquer sala de hospital. E, veja só, em tempos de escassez de médicos, o governo não teve outra escolha senão investir nelas. Criaram-se programas de capacitação, uma tentativa de profissionalizar a arte que elas já dominavam com maestria. Era uma forma de reconhecer a importância dessas mulheres e, ao mesmo tempo, garantir maior segurança aos partos.
Rafael, sem querer, me levou de volta à minha infância. Lembrei-me das tardes preguiçosas na casa de minha avó, das conversas que ela tecia com outras mulheres da comunidade. Havia um respeito quase místico por sua figura. Quando minha mãe falava dela, os olhos brilhavam. Quando alguém dizia ter nascido pelas mãos de Mãe Inês, era como uma medalha invisível, um vínculo tácito de pertencimento. Ela não era apenas a parteira; era o elo entre gerações, a memória viva de um tempo em que tudo era mais simples, mais próximo do coração.
Hoje, percebo que as parteiras eram também poetas do cotidiano. Não escreviam versos, mas os teciam com suas mãos. Cada nascimento era um poema, cada nova vida, um canto de esperança. É curioso como, com o tempo, passamos a valorizar mais o que é técnico e menos o que é humano. A modernidade nos deu conforto, mas, em troca, levou um pouco daquela humanidade essencial que só as mãos de uma parteira podiam transmitir.
E talvez seja por isso que, ao ouvir a pergunta de Rafael, senti um orgulho difícil de explicar. Nascer pelas mãos de minha avó não foi apenas um fato da minha história; foi um privilégio. Foi ser parte de uma linhagem que ainda reconhecia o valor do toque, da oração, do “vai dar tudo certo” dito com fé. E, cá entre nós, foi também ser parte de um tempo em que nascer era mais do que um ato médico; era um acontecimento.
Assim, fica aqui minha reverência a Mãe Inês e a todas as mães de consideração que, sem diploma, vestiam-se de coragem e amor. Que suas histórias nunca se percam no tempo, e que, de vez em quando, possamos parar para perguntar, como Rafael: “Você nasceu pelas mãos de uma parteira?” Porque, no fundo, essa pergunta carrega mais do que curiosidade; carrega a saudade de um mundo que já foi mais humano..
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