Análise: Queda de Assad e tomada de Damasco abrem disputa pelo poder entre facções rebeldes na Síria

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A Mesquita dos Omíadas, quarto lugar mais sagrado do mundo para os muçulmanos e principal templo religioso da Síria, foi palco do primeiro pronunciamento de Ahmed al-Sharaa em Damasco. Tratado até domingo por seu nome de guerra, Abu Mohammad al-Jawlani, o líder da coalizão rebelde Hayet Tahrir al-Sham (HTS) fez seu discurso da vitória no local, após o ditador Bashar al-Assad fugir do país diante do avanço de tropas rebeldes em direção à capital.

Esta vitória, meus irmãos, [foi conquistada] com a ajuda de Deus, com o sangue dos mártires, das viúvas, dos órfãos e do sofrimento das pessoas que estavam nas prisões — afirmou al-Sharaa a uma multidão reunida para acompanhar o discurso, aos gritos de “Allahu akbar!” (Deus é grande).

O entusiasmo dos apoiadores e o papel do HTS na grande ofensiva que partiu da província de Idlib, no extremo noroeste do país, em direção ao sul e sepultou o destino do antigo governo não são garantias de que a transferência de poder para al-Sharaa seja automática. Depois de 50 anos de repressão sob uma ditadura familiar e 13 anos de uma sangrenta guerra civil, uma miríade de grupos armados controla diferentes partes do território sírio, cada qual com seus interesses próprios e preocupações existenciais — o que indica que a queda de Assad pode significar apenas o começo de uma disputa pelo poder.

Unidos na oposição

Horas antes da chegada do novo líder ao templo sagrado de Damasco, foi outra facção rebelde que primeiro adentrou a capital no golpe final à ditadura. Recentemente nomeada Sala de Operações Sul, em referência ao segundo front aberto contra as forças do governo nos últimos dias, é formada por antigos combatentes do Exército Livre da Síria (ELS), um grupo armado que recebeu amplo apoio do Ocidente no começo da guerra civil, na década de 2010.

A bandeira vermelha, verde, branca e preta do ELS tremulou nas ruas de Damasco antes que as tropas do HTS conseguissem completar seu caminho desde o norte, em uma simbólica amostra de que, mais do que um movimento coordenado, a derrubada de Assad foi alcançada por um alinhamento por interesse.

O avanço constante das forças que partiram de Idlib e tomaram Aleppo nos últimos dias reacendeu o conflito e fez com que muitos grupos armados que estavam acomodados com o status quo decidissem aproveitar a chance e participar da derrubada do governo. Um dia antes da renúncia de Assad, havia relato de grupos rebeldes locais e facções não totalmente identificados pela imprensa ocidental intensificando suas ações contra forças governistas do sul de Damasco ao leste do país.

No norte, o ELS, que conta com o apoio da Turquia e também lutou pela deposição de Assad, ocupa grande parte da fronteira norte do país, na “divisa” com a província de Idlib. Antes da derrubada do governo, as regiões eram governadas de forma independente.

No leste, as Forças Democráticas da Síria, majoritariamente curdas, mas que também contam com integrantes árabes, dominam uma grande porção do território. Apoiado pelos EUA, o grupo desempenhou um papel fundamental na luta contra o Estado Islâmico, que continua ativo, principalmente na fronteira com o Iraque, embora não com a mesma força e dimensão que atingiu na metade da década passada, quando declarou a cidade de Raqqa a capital de seu “califado”. Apesar disso, o grupo é alvo constante de ações de Ancara, acusado de ter relações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que realiza atos terroristas em solo turco e exige a criação de um Estado próprio para a minoria curda.

Transição indefinida

Em meio à velocidade dos acontecimentos no campo militar e ao desmoronamento do regime sírio, pouco foi dito sobre o que esperar para o futuro pós-Assad. Em uma entrevista à rede CNN na semana passada, al-Jawlani (que ainda se identificava pelo codinome), sugeriu que o novo governo não seria concentrado em uma única pessoa e que haveria uma preocupação com a criação de instituições e participação popular.

Em um primeiro gesto, o líder rebelde pediu que as tropas não se aproximassem das instituições atuais, garantindo que o poder ficaria, de forma transitória, nas mãos do primeiro-ministro Mohammed Ghazi al-Jalali até a “transferência oficial de poder”. Para quem e em quanto tempo, não se sabe.

Algumas propostas começaram a ser delineadas por atores interessados. O líder da oposição a Assad no exterior, Hadi al-Bahra, defendeu que a Síria passe por um período de transição de 18 meses, para possibilitar a criação de um ambiente “seguro e neutro” antes que as decisões sobre o futuro Gabinete sejam tomadas. Al-Bahra também defendeu que uma Constituição seja aprovada em seis meses, para que as forças internas se organizem de acordo com o sistema político escolhido e se preparem para futuras eleições.

Ainda durante a madrugada, um Conselho Nacional de Transição, incluindo figuras da oposição a Assad, foi formado, definindo parâmetros para o novo governo, incluindo a proteção a todos os cidadãos do país e a preservação da unidade territorial. Potências estrangeiras, como os EUA, defenderam que a transição deveria ser liderada pela ONU. O Conselho de Segurança da organização se reunirá nesta segunda-feira para discutir a situação do país.

Em meio às promessas de participação popular e processos políticos bem estabelecidos, resta saber se alguém terá força para implantá-las.

( o Globo )

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Da Redação

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